sexta-feira, 12 de junho de 2009

NA CASA DO ESPANTO, POR ADAIR PHILIPPSEN*

ARTIGOS
Na casa do espanto, por Adair Philippsen*

Ávida por conhecer o ritual do processo legislativo, ela visitou a capital planejada da Botocúndia (o Brasil de Monteiro Lobato, em O Presidente Negro). Entre ruas entrelaçadas e intricadas, em vão procurou entender os mistérios de tantos ministérios. Já no edifício bicameral, atreveu-se a perambular pelo labirinto composto de 1.436 salas nas quais grassa sobranceira a mordomia, e o bem-estar social tem consideração bem próxima ao limite do mero detalhe; gabinetes em que se costuram conchavos e maracutaias e se moldam emendas e remendos para escamotear a própria lei; anexos onde se anexam propinas e se juntam cacos para forjar absolvições quando decoro e ética são estilhaçados e onde se arquitetam esquemas para concessões de auxílio-moradia a donos de mansões e castelo; elevadores com circulação de so(m)bras do caixa 2 em cuecas e malas pretas, junto a artistas e familiares agraciados na farra das passagens aéreas; túneis frequentados por lobistas, padrinhos e apadrinhados políticos, aliados oportunistas, sonegadores, laranjas e fraudadores; corredores sombrios forrados de tapetes para debaixo dos quais é empurrada a sujeirama e em que paira o espírito corporativo e flanam funcionários-fantasmas, servidores em férias remunerados com horas extras e empregadas domésticas pagas com verbas da casa, em companhia de dirceus, severinos, delúbios, anões do orçamento, sanguessugas, mensaleiros, componentes do baixo clero e outros tantos verazes vorazes do erário; salões que servem de instalações a fornos de pizzas e a fabricação de cabides de empregos; arquivos às traças com provas das trapaças de CPIs inacabadas; porões habitados por arapongas atrelados a grampos clandestinos; plenários às moscas ou às voltas com debates estéreis ou com atendimento de conveniências e privilégios; e tribunas ocupadas na tentativa de limpar fichas sujas com o choro simulado e enlameado pelo enriquecimento ilícito e pelas incursões adulterinas, estas confessadas pelo cândido ex-chefe da casa ante a perplexidade dos aldeões da Botocúndia.

Quando a visitante, a muito custo, achou a saída (da casa; não da conjuntura, por óbvio) e quando imaginou que finalmente se livrara do sinuoso trajeto, deparou ainda com o atoleiro movediço no qual pululam denúncias de escândalos, com o lamaçal de apropriações indébitas e uso irregular de verbas e com o emaranhado de desvios e subornos. Ao fundo também ouve o déspota assegurar: “Sempre foi assim”. É o fosso, ela conclui, que separa a ilha da fantasia do resto da Botocúndia. Ao avistar numa galeria da casa alta o retrato de Rui Barbosa constrangido (aquele senador que falou “de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a ter vergonha de ser honesto”), trôpega, Dona Vergonha encoraja-se e repisa Cecília Meireles: “Não posso mover meus passos por esse atroz labirinto”.
*Juiz de Direito
Fonte: jornal ZERO HORA
Porto Alegre/RS, 11 de junho de 2009 | N° 15997

Nenhum comentário: